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O Paraíso de Albuquerque

por Rita Jardim - Grande Reportagem (91)

Quinta da Bacalhoa
Estamos em 1515 e hoje é dia 15 de Dezembro. Uma nau solitária navega as águas do Índico a caminho de Goa. A embarcação que assim se aventura nos mares dominados pelos portugueses chama-se Flor da Rosa e leva a bordo aquele que é conhecido como «0 Grande», tal foi a envergadura dos seus feitos. Marinheiro, soldado, estadista, administrador e diplomata, aquele é o homem que colocou as chaves do Índico nas mãos do rei Dom Manuel, vedando à navegação muçulmana a saída de especiarias pelo mar Vermelho. Aquele que ali vai é Afonso de Albuquerque, o segundo e maior vice-rei da índia. Passaram-se já nove anos desde que o grande capitão abandonou o reino e por isso quem ali vai é também um homem doente e cansado, vergado pelo peso do trabalho em tão insalubres climas. Mas, mais do que cansado, Afonso de Albuquerque é hoje um homem desiludido e magoado com a ingratidão do seu monarca. Ainda há dias, cruzou-se em alto mar com uma nau indígena que o informou da chegada de um novo vice-rei, o seu rival Lopo de Soares. Dom Manuel encarregarão de substituir Albuquerque, pois fora convencido por intrigas palacianas de que o invencível capitão tinha planos para se tornar independente no Oriente.

Ao saber dessa chegada, Afonso de Albuquerque, numa frase que será recordada muitos séculos depois, exclama: «Mal com os homens por amor del-rei e mal com el-rei por amor dos homens.» E assim, ferido de morte, o deposto vice-rei dita, ali mesmo ao largo de Goa, uma carta para D. Manuel: "Senhor, quando esta escrevo a Vossa Alteza, estou com um soluço que é sinal de morte. Nesses reinos tenho um filho e peço a Vossa Alteza que mo faça grande como meus serviços merecem que lhe tenho feito com minha serviçal condição, porque a ele mando, sob pena de minha bênção, que vo-los requeira. Quanto às minhas coisas na índia não digo nada porque ela falará por si e por mim. " Assim ficava expresso o pedido de Afonso de Albuquerque para que esse rei ingrato o recompensasse pelos seus inestimáveis serviços na pessoa do filho: Brás de Albuquerque. Fruto dos amores ilícitos do vice-rei, fora por este legitimado e deixado em Portugal quando contava apenas cinco anos. No dia seguinte a ditar esta carta, morria, à vista de Goa, o "Grande" Afonso de Albuquerque, aquele que, segundo a historiadora francesa Geneviève Bouchon, era o homem de maior visão política a respeito do Oriente.

Entretanto, muito longe dali - a um mundo de distância, pode dizer-se -, Dom Manuel recebia a notícia da morte do vice-rei e das suas últimas disposições. Colhido de arrependimento, segundo alguns historiadores, ou querendo lançar a mão à fortuna que cabia ao herdeiro de Afonso de Albuquerque, segundo outros, o que é certo é que Dom Manuel, o Afortunado, logo toma Brás de Albuquerque a seu cargo. A vida deste rapaz de catorze anos não mais seria a mesma, em quase todos os aspectos dominada por este muito real protector. Dom Manuel começa por trocar-lhe o nome de baptismo: doravante seria chamado Afonso de Albuquerque. Além disso, determina o seu ingresso no convento de Santo Elói, onde iria receber a educação condizente com o futuro que lhe esperava. Um convento era a universidade do seu tempo e ali aprenderia gramática, grandes doses de retórica e bastante latim. Aos dezanove anos, de novo o rei comanda os seus destinos, escolhendo-lhe a noiva com quem casar: D. Maria de Ayala e Noronha, prima do monarca. E mais uma vez falaram as "más-línguas" de alguns historiadores, segundo os quais esta seria a forma hábil de o nosso Afortunado, considerado "um exímio caçador de heranças", canalizar para a sua família a herança do herói da índia. Elevado na sua condição social pelo casamento, é lhe depois garantida equivalente condição económica com a enorme tença que recebe do rei.

Mas a decisão de Dom Manuel que mais terá influenciado o percurso de Brás de Albuquerque foi tê-lo escolhido para, um ano depois do casamento, em 1521, acompanhar a sua filha Beatriz a Itália. A embaixada que levava a infanta, destinada a casar-se com o duque de Sabóia, demora-se largos meses em Itália, tendo então Brás de Albuquerque oportunidade de visitar diversas cidades nesse país. Durante a estada, Dom Manuel, caído doente, morre em Portugal, perdendo Brás de Albuquerque o homem que, depois do pai, mais marcou a sua vida. Mas é precisamente nessa viagem pela pátria da cultura que ele se transforma na sua maneira de ver o mundo e a arte. O filho do vice-rei ganha então um fascínio que o iria tornar para sempre recordado na história da arte portuguesa corno o responsável pela introdução da arquitectura civil renascentista. Albuquerque apaixona-se perdidamente pelo Re nascimento italiano e traz para Portugal os primeiros traços desse estilo que, irradiando de Florença, fascinava a Europa mas não lograra ainda transpor os Alpes. A transição não era simples, pois de uma arquitectura gótica fantasiosa e brincada havia que passar à subordinação a regras e proporções dos monumentos mais celebrados da antiguidade.

Logo após o regresso de Itália, Albuquerque promove a reedificação das suas "casas às portas do mar" (depois conhecidas como "Casa dos Bicos"), segundo o que observara em Bolonha, no Palácio Bevilacqua, e em Ferrara, no Palácio dei Diamanti, ambos revestidos de pedra em forma de diamante. Brás de Albuquerque decide copiar o revestimento desses enormes e imponentes palácios nas fachadas de umas modestas casas da zona ribeirinha de Lisboa. Desafiava, assim, a arquitectura local, impondo-se aos grandiosos mas inexpressivos palácios quinhentistas que a grande nobreza mandara construir junto à Ribeira de Lisboa, nos alvores do "império da pimenta". Esta era, dizem de novo as más-línguas da História, uma forma de o filho do vice-rei superar a alta nobreza a que fora elevado, mas a que não pertencia por sangue. Se a Casa dos Bicos mostrava o seu conhecimento do estilo em voga, uma outra obra seria ainda mais expressiva da preparação intelectual e cultural deste italianizante. No meio das matas de Azeitão, existia uma quinta e um palácio onde Brás de Albuquerque viu uma oportunidade única de criar o seu pequeno mundo e de dar largas ao seu gosto pelo fausto. Comprou, por isso, em 1528, a propriedade que hoje conhecemos por Quinta da Bacalhoa.

A quinta havia tido proprietários muito ilustres: Dom João I, o Mestre de Avis, depois o seu filho, o infante Dom João, e ainda a sua neta, D. Beatriz. Terá sido esta quem mandou construir o palácio que Albuquerque depois remodelará. Ao tempo da princesa, a quinta tem o nome de Villa Fraiche, pois além de abundar em água, situava-se na aldeia de Vila Fresca de Azeitão e a língua francesa sempre dava um ar mais nobre a uma propriedade da família de Avis. D. Beatriz era uma mulher opulenta e gastadora. Vivia na corte de um rei artista por natureza, Dom João II, seu genro, frequentando um meio onde muito se falava do que ia por Itália em matéria de arte, da magnificência dos príncipes mecenas e das enormes somas que estes aplicavam em grandiosas construções. Como o rei tinha predilecção por Setúbal e a quinta de Azeitão estava próxima do lugar de residência da corte, D. Beatriz decide levantar um palácio verdadeiramente principesco no local. Desejando encomendar os planos a um arquitecto hábil, e como tal não existiria no país, manda vir o artista (ou apenas o projecto) de Itália, tendo este delineado uma villa que, nesta época de transição, resultou num género medieval amodernado. Quem seria esse arquitecto? Uns clamam que teria sido André Sansovino., enviado por Lourenço de Medicis ao rei Dom João 11. outros atribuem a obra ao português Diogo Torralva. D. Beatriz destina a Villa Fraiche ao neto, o condestável Dom Afonso. A propriedade passa a chamar-se Quinta da Condestablessa quando a sua mulher, D. Joana de Noronha (a "Condestablessa"), enviuva e fica a administrar a propriedade até a maioridade da filha, D. Brites de Lara. É esta herdeira do Condestável que vende a Bacalhoa a Brás de Albuquerque, por sinal, casado com uma prima de D. Brites. Logo depois de a comprar, Brás de Albuquerque inicia um conjunto de obras de remodelação que durará 37 anos: 26 para acabar a parte arquitectónica e onze para os revestimentos cerâmicas. Uma maratona dedicada a um sonho.

É difícil saber o que ficou das edificações anteriores, mas é provável que Albuquerque tenha deixado apenas aquilo que não feria o seu mosto requintado. Assim, conservou as numerosas torres cilíndricas com cúpulas de gomos (semelhantes às que Francisco de Arruda colocou na Torre de Belém entre 1515 e 1521) e que., à maneira medieval, flanqueiam os cantos do palácio e o muro da quinta, denunciando uma estética arabizante e manuelina, já então um pouco déinodé. O Renascimento do palácio nota-se sobretudo no despojamento decorativo, em que a arquitectura se recusa a contribuir como elemento decorativo. Por outro lado, as fachadas nobres do edifício lembram os palácios da Florença que Albuquerque trouxe na memória. Austeras e ordenadas, essas fachadas recortam-se em arcos de volta perfeita, assentes em colunas toscanas num jogo de simetria irrepreensível. Era a loggia florentina que por tão bem se adaptar ao modo de vida e ao clima português. se tornaria verdadeira característica da arquitectura nacional. Em duas outras construções figura também esse arco tão perfeito que proscreveu o arco ogival e é sinal do Renascimento na Casa de Fresco, um pavilhão de recreio junto ao Ia-o, e numa galeria de arcadas no pátio de recepção da casa.

A par de uma sábia simplicidade, a abertura para o exterior era o elemento de maior inovação importado por Albuquerque. Mais do que uma pesquisa decorativa, traduzia o novo espírito que tomaria as habitações civis agora mais próximas da natureza e despojadas de toda a função defensiva. Dessa proximidade com a natureza, exigida por um humanismo naturalista, Albuquerque introduz também uma nova abordagem do jardim, que agora ganha uma maior importância na sua articulação com a casa. Se é certo que o jardim da Bacalhoa não tem o traçado nacionalista e programático da villa italiana, há contudo nele uma certa regularidade na organização do espaço. Na história dos jardins em Portugal, a Bacalhoa ficou como uma combinação entre o típico jardim português e o novo jardim de recreio renascentista. Mantém-se então a tradição portuguesa de descontinuidade entre as várias áreas e, por isso, o muito italiano jardim de buxo encontra-se separado do bem português laranjal, deixado pela presença islâmica. Um outro elemento tradicional que se conserva é o grande tanque de rega existente ao fundo da quinta, mais um fruto da tradição mediterrânico-islâmica. Inovadora, contudo, é a forma erudita como o tanque se apresenta, ao ser associado a uma renascentista Casa de Fresco ou de Prazer (uma espécie de pavilhão de jardim), bem como o carácter monumental que este conjunto assume quando interligado ao palácio por um longo passeio. Foi nesse passeio, a simular o deambulato romano e na tradição portuguesa das grandes latadas, que Albuquerque manifestou o seu gosto por uma decoração sofisticada. Durante largas décadas, o herdeiro do vice-rei iria encomendar uma variedade de azulejos que aplicará sobretudo nos bancos, nos alegretes e nos muros desse passeio, na Casa de Fresco e ainda no palácio. De início. importa-os de Sevilha, das oficinas de Triana, mas começa depois a recorrer ao mercado português que então dava os primeiros passos.

A Bacalhoa é, assim, não apenas o nosso exemplo pioneiro de arquitectura civil renascentista como também o local onde encontramos alguns dos primeiros azulejos produzidos em Portugal. A variedade é, por isso, surpreendente. Aqui encontramos azulejos sevilhanos mudéjares, relevados e de motivos geométricos, como é o caso dos da Casa de Fresco. Igualmente de padronagem sevilhana são alguns dos azulejos aplicados no muro junto ao tanque, com motivos naturalistas do Renascimento, uns realizados na técnica de aresta e outros à maneira da majólica. Mas Albuquerque também encomendou azulejos monocromáticos, destinados a composições em xadrez que aplicou, em gesto de continuidade, nas cercaduras das portas da casa e ao longo dos bancos e alegretes do jardim. Por fim, os primeiros azulejos figurativos historiados portugueses surgem aqui com assuntos bíblicos e mitológicos: é o caso do painel representando O Rapto da Europa, aplicado no muro do passeio, o painel figurando Susana Surpreendida pelos Velhos, e O Rapto de Hipodémia, ambos na Casa de Fresco, e, por fim, os painéis álegóricos dos rios existentes na loggia poente, de inspiração hispano-flamenga. O gosto italiano de Albuquerque fez acompanhar esta decoração de azulejos com bustos e medalhões em terracota e em faiança ao estilo dos ceramistas florentinos Della Robbia, cercados de grinaldas de flores e frutos. Menos resistentes ao tempo e ao vandalismo do que os azulejos, já quase não restam bustos nem medalhões, exceptuando os da fachada norte. Os medalhões em melhor estado de conservação foram vendidos a Itália no início do século XX e classificados como Della Robbia autênticos. De Bolonha ou de Ferrara, Albuquerque trouxe para a ornamentação da sua quinta a paixão pela policromia dita em terra cotta invetriata. De certa forma, parte do resultado dessa paixão acabou, ironicamente, por voltar às origens. O que também não resistiu ao tempo foi a Casa da índia que se diz ter existido na quinta e onde Albuquerque colocou umas telas que relatavam os feitos do seu pai na índia. Muito do fascínio pela glória do vice-rei que então aqui se respirava desapareceu com essas telas.>

Quando a Bacalhoa já se encontrava em ruína, no início do século XX, um estrangeiro comprou-a, resgatando-a de tão "destruidoras" mãos nacionais. A Quinta da Bacalhoa já então tinha passado três séculos na posse da família de Afonso de Albuquerque, na qual continuaram a distinguir-se homens ligados ao mar. Foi o caso de Dom Jerónimo Manuel, o Bacalhau, comandante da frota das índias e a quem a quinta deve o seu nome actual, e Dom Luís de Mendonça Furtado, vice-rei das índias em finais do século XVII. No início do século XX, a quinta passa por várias mãos. Comprada por Dom Carlos, é vendida a Raul Martins Leitão que, por sua vez, a vende a Omela Z. Scoville, em 1937. Quando esta milionária norte-americana toma posse da quinta, encontrada em estado de ruína avançada e inicia longas obras de restauro. Seis décadas depois de incansáveis trabalhos de recuperação, já em 1998, o neto de Mrs. Scoville coloca a Bacalhoa à venda, por uma soma astronómica que rondará um milhão e 370 mil contos.

Hoje, a Quinta da Bacalhoa é ainda um testemunho único do fugaz Renascimento português. É um museu do azulejo ao ar livre e um encantador exemplar da arte dos jardins em Portugal. Contudo, caminhando pela casa onde viveu o filho do "Grande" Afonso de Albuquerque, a sensação que fica é de uma certa decadência. Não a decadência da ruína, porque esse não é o estado actual da Bacalhoa, mas uma decadência dos costumes deste país que deixou que se roubassem, estragassem e vendessem muitos dos azulejos e medalhões que em tempos cravejavam esta quinta como uma jóia. O que resta da Bacalhoa devemo-lo a uma estrangeira apaixonada pela arte e por Portugal. E não o devíamos dever a ninguém senão a nós próprios.

 

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